Escorregou os dedos sobre as teclas do órgão, inspirando o ar noturno antes de, mais uma vez tocar Toccata e Fuga em Dm. A janela escancarada trazia-lhe a brisa da noite, que gentilmente causava arrepios nos pêlos dos braços enquanto o silêncio, na mesma dança, penetrava pelas entranhas e apaziguava seu peito de forma serena. Apenas o instrumento e só ele poderia acalmá-lo naquele momento de solitária inquietação.
Estava numa casa. Sentia que era a sua, mas não se parecia nada com ela. A que possuía diante dos olhos era estreita, úmida e cheirava a morte – o que, se me permite dizer, era bem diferente da real. De longe, podia ouvir os gritos de sua esposa, assim como também batidas violentas na parede. Ela o chamava, buscava por ele. Mas onde diabos sua amada se escondera? Não, espere, estava perto agora. Tinha que alcançá-la imediatamente e a tirar do lugar horrível em que se encontravam antes que algo ruim acontecesse. Poderiam ir para onde ela quisesse, só precisavam sumir dali antes que a coisa se tornasse real. Aconteceria, sabia que aconteceria mas onde...
Viu as feições pálidas - estava assustada? - da moça aparecerem ao pé da escada, tendo apenas as bochechas coradas para constatar que não era um cadáver ambulante. O rosto, antes sereno, trazia terror misturado ao medo, e quase oculto por baixo destes, felicidade finalmente por vê-lo. Procurei por ti em todos os cantos, como estou assustada, meu amor! disse, caindo em seus braços num abraço trêmulo. Venha cá, querida, vou protegê-la...
Uma explosão de cacos de vidro lá em baixo. A moça afastou-se, suprimindo mais um grito. Vamos, ela disse, a voz aterrorizada. Fez menção de correr para o outro lado do corredor, puxando o homem pela mão, mas este negou com a cabeça e mandou-a entrar no quarto à esquerda.
No entanto, ela não foi. Estava assustada, mas não iria sem ele. O castanho pegou em sua mão – estava fria – e ficou a olhar para a escada com a respiração descompassada. Iria enfrentar o que quer que destruísse tudo lá em baixo, não importando que estivesse tão assustado quanto sua amada. Jamais permitiria que sua donzela se expusesse a tal perigo novamente.
Algo alcançou o pé da escada. A moça ao seu lado tremera violentamente, mas manteve-se em posição firme. A coisa iria chegar. Pôde ouvi-la começar a subir as escadas rapidamente e ficou esperando-a, aflito com sua proposital demora.
(Subia degraus infinitos para assustá-los, não vê?)
Os dois apertaram as mãos, sem se olhar; o coração batendo rápido. Ele manteve-se ereto, olhos centrados no topo da escadaria. O silêncio desceu em forma de raio sobre eles e...
Apareceu. Ela gritou.
Acordou.
Relembrar o pesadelo causava-lhe angústia, medo. Ela estava lá em baixo, dormindo serenamente no sofá após um longo dia, portanto não havia motivo para temer por sua segurança. Não havia monstruosidades espreitando pelos cantos da casa; não havia nem mesmo ladrões por aqueles lados. Estava se deixando dominar pelo sonho ruim, pelo medo de perdê-la logo agora em que a havia finalmente encontrado.
Saltou do órgão, precisava conferir. Assim que a visse, tomá-la-ia nos braços e a colocaria na cama, para velá-la durante os sonhos e afastar todos os monstros que ousassem aproximar-se da face angelical.
Entrou no corredor, o coração inquieto. Descendo as escadas mais rápido que pretendia quase se enrolou nos próprios pés mas um salto no segundo exato, fê-lo cair de pé e – sem perceber – correr para a sala.
A televisão estava ligada, piscando e falando para ninguém. O sofá disposto de costas para a porta, permitiu-o ver apenas os fios castanhos sobre o braço do sofá. Ela estava bem, estava só dormindo, não tinha com o que se preocupar. Como tinha sido bobo ao pensar que sua amada estaria em perigo sem mais nem menos.
Um sorriso aliviado percorreu-lhe os lábios, e então permitiu-se soltar do coração o peso do temor e estupidez por ter acreditado num sonho daqueles. Aproximou-se do sofá e beijou a testa da moça. Finalmente iria protegê-la nos braços, acariciá-la... Porém estranhou a frieza da pele quando seus lábios a tocaram e afastou ligeiramente o rosto. O alívio que ainda há pouco obtera sumiu com o medo. Seu corpo estremeceu, e, tomado de desespero, percorreu os olhos pela silhueta do corpo, acabando por ver sangue colorindo-o da cabeça aos pés, as mãos suavemente pousadas sobre a barriga. Apertou os punhos diante de tamanho horror, e sem demora seus olhos foram parar na face – tão bela! – da garota. Tinha filetes de sangue escorrendo-lhe pelos olhos revirados e a boca ligeiramente entreaberta, como se segundos antes tivesse tentado gritar.
Ela tentara. E ele não ouviu.
Um nó de terror se formou em sua garganta; a dor alastrava-lhe o peito e as forças fugiram, como se tivessem atingido-lhe a derradeira flecha envenenada*. Gritou, as lágrimas de raiva, dor e medo vieram instantaneamente. Queria tocá-la, precisava tocá-la, mas algum tipo de barreira invisível feita por sua própria mente o impedia sequer se mover para perto.
Ainda estava sonhando.
(não)
Precisava estar apenas no pesadelo dentro do pesadelo, que de uma forma engraçada armou para que ele ficasse assustado e sem forças para acordar. É claro, aquilo era (real) lógico e fazia sentido. Disse a si mesmo que deveria acordar, que era a hora de
(não é um sonho)
acordar. Sacudiu a cabeça, mas nada do inferno desaparecer. O fio do medo tornara a se enlaçar em seu pescoço e ria as gargalhadas ao pé do ouvido. Estava feliz.
Sua amada, sua querida, sua...
Fora tudo culpa sua, deixara-a sozinha enquanto corria risco tão grande. Devia ter levado o pesadelo a sério e descer de imediato; devia ter ouvido os gritos verdadeiros, e não os imaginários... Sua culpa, sua culpa!
Ergueu os olhos. Para seu horror, sua visão prendeu-se a dois buracos negros no lugar dos globos da criatura, que trazia consigo um sorriso doentio há menos de dois centímetros de distância.
A risada desalmada explodiu na casa. Estava acabado.
*: Referência a flecha evenenada que atingiu o calcanhar de Aquiles.
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Aaah ficou uma bosta mesmo u.u 'to com pressão baixa e uma dor de cabeça daquelas, não consigo pensar ù.u'' É provável que eu vá mudando o formato do texto ao longo dos dias por causa disso, fiquem atentos =)
Céus, isso tirou meu fôlego G_G'
ResponderExcluirÓtimo texto, incrível, tocante e no caso, aterrador x-x Se este ficou uma bosta, penso como seria uma versão 'ótima' dele x)
Parabéns, honey *-*
Ficou foda, já te disse! *-*
ResponderExcluirA maneira como você o escreveu, sei lá, vai nos levando e prendendo até o fim que é, em partes, inesperado.
Muito bom xD