21 de Dezembro. O Sol espreitava lá fora, desejando insistentemente romper a barreira de vidro que recolhia todo esplendor dos raios para si. O vidro era egoísta e orgulhoso, por isso nem ao menos se passava por sua cabeça abrir-se e dar espaço ao ar, que junto ao Sol aguardava sua vez de ter lugar no cômodo.
Por mais egoísta que a matéria pudesse ser, ele não se importava. Que o Sol e o vidro teimassem um com o outro; que o ar enraivecido rugisse para outros lados! Não se importava um dedo com nenhuma dessas coisas. Na verdade, tudo o que havia do lado de fora era absolutamente dispensável. Mudara-se para cantos mais afastados da cidade, mas não precisava das árvores ou sequer dos pássaros. Diabos, ninguém precisava disso. A poltrona o acolhia muito bem, obrigado, dentro do quarto.
O corpo largado na almofada mantinha-se inerte; apenas os olhos e só os olhos se mexiam vagarosamente, quase como se tivessem preguiça em fazê-lo e no final das contas fosse melhor mesmo deixá-los quietos, vagando silenciosamente nos sonhos mais profundos. Uma pena era que estava de olhos abertos. Não que isso o impedisse de sonhar, de forma alguma – fazia apenas com que estes sonhos perdessem o foco rapidamente e seria deveras triste que algo assim ocorresse com um delicioso sonho do verão que começava. Definitivamente, de olhos abertos é fácil se distrair, já com eles sutilmente fechados...
Escutou o clique da porta abrindo e, em seguida fechando-se. Podia ser qualquer um, até mesmo seu finado pai que não se esforçaria para escorregar os olhos até a entrada e ver quem era. Não fez nada, continuou pregado ao céu que por trás da janela parecia cada vez mais interessante conforme os tons de azul que lhe empregava.
- Ocupado? – Disse-lhe uma voz feminina, entregando claramente pelo tom, que sorria. Minto; não era "uma" voz feminina, era "A" voz, e essa fê-lo ficar alarmado ao ponto de ter que segurar-se nos braços da poltrona para não cair. Não ouvira seus passos, tinha certeza – se tivesse ouvido saberia de quem eram há quilômetros de distância . Mas então era mesmo ela quem dava o ar da graça? Não podia ser. Riu baixo, levantando os olhos na direção dos que lhe fitavam. A moça realmente tinha o tal sorriso nos lábios.
Encarou-a melancolicamente, sentindo o coração reaquecer-se a cada segundo em que cuidadosamente revia as linhas do rosto, do corpo, da alma da pequena de sorriso travesso. Intencionando tocá-la, ergueu a mão direita, mas de uma forma engraçada os dedos não roçavam sobre a superfície macia da pele de ninfa, por mais que os esticasse ao máximo. Talvez estivesse sem forças. Mas no momento não fazia diferença porque aquela inútil tentativa de tentar afagá-la fê-la alargar ainda mais o sorriso. Riu também.
- Do que é que está rindo? – Brincou a castanha, em falso tom repreensivo, as mãos pousadas sobre a cintura.
- De nada. Estou feliz em vê-la e está muito bonita, se me permite dizer. – O tom era cortês, exatamente da forma como conversavam desde a adolescência por pura graça. Como aquilo o acalentava o coração! Parecia não haver passado um dia sequer desde que se conheceram – era como se descobrisse mais e mais da garota a cada dia quando na verdade podia jurar saber de tudo. Estava certo quem disse que quando se é jovem, tudo é infinito.
- Ah, é? Pois saiba que o senhor, senhor violinista, está deplorável. Posso saber há quanto tempo não come? – Retrucou a moça, estreitando os lábios. Ela estava realmente chateada ou era mais uma vez apenas uma das brincadeiras infantis? Céus, como podia ser tão sublime o tom de tamanha irritação sendo esta verdadeira?
- E quanto a ti? Está mais para um fantasma! – resmungou, em contradição ao que dissera ainda há pouco. A garota ficara em silêncio durante alguns instantes, o que o fez pensar imediatamente em tê-la ofendido; e quando já tinha o pedido de desculpas na ponta da língua viu-a abaixar-se e ficar cara a cara com ele, a dois ou três centímetros de distância. Algo havia aparentemente empurrado seu coração para dentro de um turbilhão de águas furiosas tamanha era a agitação desse ao simples olhar cândido da donzela.
- Que é que você tem?
O olhar se estreitou, brilhante de desconfiança. Passaram-se alguns segundos até que ela retomasse a voz:
- Não sentes nada? – Murmurou, insistindo na tortura daquela troca de olhares de um milhão de sentidos diferentes dos quais nenhum dos dois sabia expressar o significado.
- O que queres dizer? – Não havia a possibilidade de que ela dissesse o que ele queria que fosse verdade, mas o coração ainda palpitante insistia na idéia de cravar-se ao peito da moça. A pele moreno-pêssego era a culpada! As curvas, o sorriso! E mais do que todos o espírito benevolente e carinhoso, dotado de egoísmo infantil e sutil inocência.
A morena sorriu e se afastou, enquanto ele sentiu o corpo aos poucos relaxar, aliviado pela desaproximação tão rápida como viera. Expeliu o ar retido nos pulmões com um sorriso auto-repreensivo, e apoiando-se num dos braços da poltrona ficou a olhá-la ternamente, sem poder naquele momento sentir o peso da culpa pairando-lhe sobre os ombros. Não, tinha que preocupar-se em admirar os olhos em forma e tom de amêndoas, em mergulhar neles e nunca mais voltar. Do que é que estiveram falando mesmo? O timbre tranqüilo e acolhedor confundia-lhe os sentidos, certamente precisaria até que perguntassem seu nome duas vezes para se dar conta de que era com ele que falavam.
- Quero que me diga a verdade. – falou a castanha, um tanto mais séria. Desejou dizer: “o que? Não sei do que está falando” mas ah, deus sabia que tinha total compreensão da exigência feita. Foi então que a culpa, já ansiosa para apanhá-lo, desabou sobre sua cabeça. Amava aquela que lhe era fruto proibido, aquela que agora como nunca estava fora de alcance, aquela que jamais saberia que tipos de sentimentos cultivava em relação a ele: a noiva de seu melhor amigo. Que traição silenciosa era! E quanto mais aumentava o amor pela moça menos podia encarar quem ficou ao seu lado desde tempos nos olhos. Suspeitava que ele desconfiasse, mas faltou coragem para destruir sua amizade e seu próprio casamento para confirmar-lhe as inseguranças.
- Tu sabes qual é. – Utilizando de esforço sobre humano, ergueu-se da poltrona. Mirava os orbes castanhos de forma apaixonada e triste, o coração apertado. Tinha de aproveitar cada segundo daquele olhar e tomá-lo para si antes que ele mais uma vez escapasse por entre os dedos. Fitara-a durante alguns segundos, sem saber responder o que diziam os olhos da moça, muito menos o que se passava dentro de si próprio. Sentimento sem nome, sem freio, consumindo de cada centímetro são do ser.
- Diga. – Murmurou ela, quase sem voz. Aproximaram-se gradativamente, ficando a menos de um passo de distância. Não pôde deixar de notar o desenho angelical que os cachos faziam em torno do rosto, absolutamente bela...
Agora, mais que nunca estava perdido. Erguera a mão para tentar tocá-la novamente, e desta vez conseguira. A pele continuava macia como pluma, delicada como um cristal que ao menor toque pudesse se quebrar – de fato estava absolutamente igual e bonita. A morena fechou os olhos suavemente, entorpecida pelo toque carinhoso enquanto o rapaz descia a cabeça a sua altura, também de olhos fechados.
- Eu a amo. – sussurrou, tocando-lhe a face com uma das mãos enquanto a outra procurava pela sua. Os dedos entrelaçaram-se em perfeita harmonia e a castanha entreabriu os lábios, prestes a dizer o que enchia-lhe o coração quando os lábios dele buscaram pelos seus, encontrando-se de forma apaixonada e intensa. Não havia palavras para tal sensação, não havia controle ou retorno. Ao se afastarem, sem fôlego, a pequena disse:
- Eu te...
Então houve outro clique da porta se abrindo e sentiu suas mãos de repente tocarem o ar, fazendo-o cambalear para frente. Os olhos se abriram, e esbugalhados rumaram até a porta, confuso. Lá se encontravam sua esposa, de expressão horrorizada e olhos marejados. Demorou alguns segundos até que ela, com voz embargada de cólera e tristeza, gritasse:
- Já faz dois anos! – Havia um claro esforço em sufocar as lágrimas, em nome ao orgulho – Você a ama como deveria amar a mim, a sua esposa!
- Alice... – Queria acudi-la, dizer que sim, a amava imensuravelmente e que estava enganada. E era isso que ela esperava ouvir. Esperou em vão, fitando-o com as lágrimas cobrindo-lhe o rosto bonito, recoberto da mais profunda dor. Se ele ao menos entendesse que a forma como amava-o era a forma como ele amava a outra... O rapaz não falou nada, e cansada de esperar, soluçou:
- Nem morta ela nos deixa em paz! – Dizendo isso, bateu a porta com violência.
Novamente, o rapaz ficara sozinho. Olhava para a porta, mudo, confuso. Buscou em seus braços sua amada que um segundo antes estivera ali, com os lábios presos aos seus. Lábios macios, doces, ilusórios. Estivera sonhando com ela o tempo inteiro. Levou os olhos a janela fechada e apertou-os, contendo as lágrimas.O rosto se perdeu entre as pernas e ele gritou, tomado de dor, raiva e revolta. As lágrimas vieram sem ser convidadas e então, quando a mudez enfim dominou-lhe as cordas vocais, pôde ouvir sua esposa em prantos do lado de fora, e percebeu que agora, não podia ficar simplesmente parado e ver sua mulher, a quem jurou amar eternamente, sofrer daquela forma. Iria resolver tudo.
Ergueu-se, com olhar firme e decidido e foi atrás de Alice, dando apenas um último olhar para a sala. O coração dizia um número incontável de palavras de amor a moça que, em sonhos, estava com ele, e os lábios não ousaram repetir as mesmas para a esposa.
Saiu, e no minuto seguinte estava a consolar sua desolada companheira de coração ferido enquanto o seu próprio mantinha-se nos mais incontáveis pedaços.
Oh, céus...
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