quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Epitáfio

Antes via as horas e elas sequer tinham significado. O tempo, para o jovem, é sempre infinito, - "futuro" por si só já soa a centenas de anos-luz de distância - mas agora que estou velho, que as visão já embaça e só se é possível dormir com mais pílulas que desejei conhecer, penso quanto dele ainda me resta. Fiz tudo o que quis? Tudo o que pude? Foi o suficiente? 
Não. Uma palavra simples - e mortal - que meu coração falou mais alto do que eu queria ouvir. A dilacerante sensação de perda, um buraco negro dentro das minhas memórias sugando tudo que eu deveria ter feito - e não fiz - para dentro, numa expansão contínua de 
Arrependimento. 
"Não se pode acertar toda vez", alguém me disse certa vez, "sempre haverá algo faltando. Ninguém tem tudo". 
Mas estranhamente eu sentia como se não tivesse nada. Os meus sonhos, - eu tinha sonhos - o que fiz deles? Fechei os olhos, tentando me recordar apesar da memória falha quais eram. Fazia anos - décadas - que não ouvia mais aquela palavra. "Sonho", uma palavra carregada em esperança e expectativa. Quais foram as minhas e em que momento se perderam? Forcei mais. Não conseguia me lembrar. 
De repente, não sabia mais o que havia feito da minha vida, o que havia sido. Onde estava todo o tempo que dizia não ter nem para fazer uma única - veja bem - visita aos pais? Me lembrava de estar sempre sem tempo. Corria e acelerava tudo o que podia, mas ironicamente não tinha nenhum. Até que então o Sr e a Sra. Andrade faleceram e já não podia fazer-lhes qualquer visita. Nem no Natal que, por sinal, detestava. Natal, Ano-Novo, reuniões, familiares... Por alguma razão todos conseguiam me irritar, principalmente crianças. Além do que tinha os problemas do trabalho - isso é, ate antes de ser demitido pela idade - e... Céus, o que eu virei? Depois de tantos anos eu tinha me tornado um homem amargo? Até mesmo... Infeliz? Me lembrava de gostar de tudo, amava ver e conversar com as pessoas. Só não sei em que momento tudo se perdeu.
Você não tem nada. Onde está a mulher que amou? O filho que abandonou? Os amigos que feriu? 
"Não sei", respondi, a voz embargada de uma dor sem volta, da dor das coisas que perdi e já não poderia mais recuperar. Passei tanto tempo sem tempo que ele passou, e eu nem vi. Nem vivi.


Quando era jovem, Sérgio queria ser político, dizia-se marxista convicto, existencialista e não só! Seria voluntário, em alguns anos - não muitos, pelas suas contas - tiraria todos os indigentes da rua e daria condição do Brasil ser um país decente e igualitário. Ninguém mais ia sofrer preconceito pelo que quer que fosse e ele estaria na liderança disso. Faria um país melhor, um país "de todos", como a propaganda dizia, e não de "tolos" como os oposicionistas e a realidade diziam. 
De cada uma dessas coisas ele se lembrou. Assim como se lembrou de ter abandonado a mulher que amava por uma rica e velha - ainda que a primeira estivesse grávida -, de apontar o dedo para o negro no ponto de ônibus, de passar reto pelo mendigo na rua e de se se vender para primeira empresa que lhe ofereceu um posto alto. Culpou o mundo, as circunstâncias e por fim, o maior e verdadeiro culpado de tudo, a si próprio. 
Chorou. Ele sabia que não era o único, mas estava sozinho. Em breve morreria e ninguém saberia, se lembraria, se importaria. Quem era ele e o que tinha sido? Era tarde demais, e em algum lugar muito longe, Branco Mello cantava: Devia ter complicado menos/Trabalhado menos/Ter visto o sol se pôr/Devia ter me importado menos/Com problemas pequenos/Ter morrido de amor.

Música: Titãs - Epitáfio

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