terça-feira, 14 de agosto de 2012

Brisa de outono


            O olhar ameno desceu, lenta e melancolicamente, para junto dos lírios-do-vale, fechados em si em sua própria e infinda tristeza. A brisa de outono dos altos vales europeus os agitava, num movimento tanto desprovido de ritmo que chegava a ser belo, da forma como apenas o impensado da natureza podia ser - movimento este que em poucas semanas os levaria para longe, em direção ao profundo azul do Atlântico. Ali, as pétalas desenleadas receberiam seu último sopro outonal e, completas em vida, voariam ao seu derradeiro fim.
            No Brasil não havia flores como aquela. Talvez na região Sul, onde o clima temperado era favorável, mas certamente não onde havia Caído. As terras quentes do litoral brasileiro não permitiriam que nada tão triste se erguesse sobre a areia branca das praias virgens. Não tão virgens quanto já foram um dia, ponderou, mas, alegrava-se ao pensar que a em que acordara pela primeira vez junto aos terrenos, continuava intacta, longe dos olhares - e do conhecimento - de, facilmente, noventa e oito por cento da população. Sentia saudades da segunda casa. Com o tempo, passara a apreciar o mundo humano, a criação primordial do Altíssimo, e não apenas por Ele tê-los o feito - e como anjo guerreiro, ser seu dever os proteger - mas por haver no plano físico uma quantidade inumerável de locais, experiências e realidades a se conhecer. O livre arbítrio, uma dádiva concedida apenas aos terrenos, os levou à pólos opostos e inimagináveis - à destruição e à glória. Nenhum anjo jamais poderia sonhar com aquilo para si. Uma alma, o poder de desenhar o próprio destino. 
            Uma das mãos foi erguida, e uma antiga, e aparentemente inútil arpa ao lado do alto homem de cabelos ruivos começou a tocar. Era uma antiga canção celta, apreciada em diversos festivais de recepção do outono, especialmente no sudeste de onde é hoje o País de Gales, e naturalmente onde a aprendera, quatro mil anos antes. Ainda que estivesse um tanto distraído com a melodia, os instintos naturais de anjo não deixavam passar -  estava quase na hora.
            E não se enganou. Pouco tempo depois, o tecido que divide o plano físico do etéreo foi rompido naquele vale. O anjo não estava ali por coincidência. Locais intocados pelo ser humano e/ou espiritualizados - antigos templos, ou acampamentos de ceitas de magos, por exemplo - possuem o tecido dos dois mundos muito mais fino, e sendo assim, são mais fáceis de serem rompidos. Dessa forma, os anjos, materializados em seus corpos físicos, podem passar ao mundo terreno e circular sem serem notados pelos humanos. Os sentidos se aprumaram, a intensidade de sua aura aumentou, e num instante veloz como um piscar de olhos, outro homem apareceu. Este tinha aparência mais rígida ainda, característica de quem, há muitos séculos não sai de batalha. A música desapareceu, e ambos os guerreiros trocaram olhares, cumprimentando-se silenciosamente.
            - A terrena está morta? - Indagou o moreno, em sua voz de trovão.
            O outro não se demorou.
            - Sim. Ele a havia matado há muito tempo... - Tinha um tom de indignação dolorida na voz, mas havia cem anos que o assassinato ocorrera, e por mais que tivesse jurado vingança, aprendera a controlar os instintos sanguinários. - ... Apenas queria me emboscar.
            O recém chegado fez uma pausa. Olhava a vasta extensão de terras cobertas de grama laranja, mas nada falou sobre elas, apenas esperou o momento que julgou ser correto antes de voltar a retomar a voz. O anjo caído era seu amigo desde os tempos de criação do mundo, a solidariedade e amizade era marca registrada dos dois.
            - Seja bem vindo de volta, comandante. Vamos salvar a Criação... - Ele se virou para o outro - e vingar a terrena. 
            O anjo ruivo fez um aceno positivo com a cabeça, e respirou profundamente, pela última vez, o ar limpo do vale esquecido. 
            - Sim, general. Estou pronto a liderar minhas legiões. 
            Nada mais necessitava ser conversado. O tecido se rompeu de novo, e pela primeira vez em centenas de anos, o anjo deixou que as asas se separassem das costas, e ambos alçaram vôo num impulso, indo em direção ao céu que parecia infinito... Até desaparecerem. "Vença o fim do mundo. Sua missão, Amael, é salvar a raça humana." 
            Deteria o extermínio dos Filhos da Criação. Era sua vida, era sua honra, seu sangue, seu dever. 
            Era, acima de tudo, a sua vingança.   

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