segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

O ver invisível

                                      "De repente, a gente vê que perdeu 
                                      Ou está perdendo alguma coisa 
                                      Morna e ingênua que vai ficando no caminho" 
                                                                                   - Cazuza 

                Um dia acordei e vi que tinha me perdido. Não me perdi dos outros, de casa, não – me perdi de mim. Sobrevivia sem viver. Só ia, sem saber aonde chegar, sem sentir o cheiro das flores no caminho. Não sabia o que estava fazendo vivo, porque não ouvia nada vindo do lado de dentro. Não sabia como agir. Não sabia quem era eu. 
                Quis ir embora, me encontrar em algum lugar. Apesar dos amigos queridos, sempre fui solitário por dentro, e acreditei que a cara solidão era melhor companheira para chegar até mim do que eles. Fui. Larguei tudo, amigos, família, trabalho. Viajei por Minas, Rio, São Paulo, Bahia, cheguei até na Argentina. Vivi lá por cinco anos – o primeiro mais difícil –, arrumei um trabalho numa relojoaria, casei com uma argentino-chilena e até comecei a pensar em fazer família.
                Um dia acordei e vi que tinha me perdido. Me perdi da solidão, me perdi do caminho para mim mesmo. Estava sobrevivendo de novo, e quando parei para escutar, não ouvi nada do lado de dentro. Estava vazio, não sabia quem eu era, nem porquê estava ali. A despeito das lágrimas da esposa, larguei tudo e fui embora de novo. Virei marinheiro.
                Naveguei o Atlântico de cima a baixo, tomei o vinho dos colonizadores, vi o vermelho caribenho e até presenciei um homem morrer por um diamante angolano. Em dez anos aprendi um pouco de todas as línguas, experimentei um pouco de todas as culturas e trabalhei com coisas impossíveis de se imaginar.
                Um dia acordei e vi que tinha me perdido. Sabia de todo o mundo, mas não sabia de mim. Eu me esquecera de mim. Me forcei a ouvir, mas continuei a não escutar nada vindo do lado de dentro. O silêncio estava tão profundo quanto da primeira vez que eu havia o notado, e agora que já tinha ido para todos os lugares, não sabia mais para onde ir. Decidi que só ouviria quando estivesse em total silêncio, e fui embora. Me mudei para as montanhas da Austrália.
                Construí uma casa, fiz um jardim, cheguei inclusive a arrumar lugar para alguns animais. Não tinha amigos lá, não casei de novo, não viajei. Vivi na cabana por vinte anos para conseguir ouvir algo dentro de mim, e não escutei nada. Nem um dia, nem uma única vez. Já estava velho, morreria logo, e resolvi voltar para casa. Metade dos meus amigos já estavam mortos, a maior parte da família também. Um dia, chegou a minha vez.
                Era noite de primavera, o ar da noite estava fresco e eu fechei os olhos. No silêncio daquele momento, enquanto o ar soprava pela janela aberta, ouvi. Ouvi dentro de mim. Um suspiro, quase um sussurro, que fez meu coração acelerar enquanto eu o escutava e depois se acalmar quando o entendi. As repostas estavam distantes de todos os cantos do mundo, e a distância de um sopro de criança de mim. Eu buscara tanto descobrir quem era, que havia descoberto tudo, menos como me enxergar. Para mim, eu era invisível.
                Mas já era tarde demais. Morri, sem nunca ver quem eu era.

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