terça-feira, 10 de setembro de 2013

A Lolita De Cada Um

            Era impossível para mim manter o foco da visão longe daqueles braços bronzeados. Havia neles tanta espontânea delicadeza que, se eu ousasse tentar desviar, meu coração seria capaz de palpitar, palpitar, palpitar... Parar! Num ataque fulminante. Não podia, era demais. Da penumbra do meu antigo apartamento jamais poderia admirá-los assim tão de perto.
            Admirá-la inteira. O cabelo pincelado em mel, penteado em traças nos dias de sol, ou com apenas um grampo de borboleta nos de chuva; um dia, no parque de diversões, arriscou uma tiara amarela, estampando um sorriso para mim ao perguntar: "é bonita a cor, tio?" Nunca perguntava se estava bonita, se era bonita. A cor da tiara era bonita, ela mesma não se importava com ser.  Entre os de sol e de chuva, ela preferia os de sol, porque podia se estender no gramado do quintal e ler revistas feitas para as pré — amaldiçoado seja quem criou isto! — adolescentes, que não encaixavam em nada com sua personalidade diligente. Mas ela gostava dos sucos mágicos, dos adesivos com cheiro de morango, abacaxi, canela... Pouco se importava com o gloss mais bonito.
            Se importava comigo, porém. No ápice de seus doze adoráveis verões, era imprescindível trazer-me suco de limão na varanda. Bolos de baunilha eram a especialidade do fim de tarde, principalmente se a mãe estava em casa para ajudar no forno. Eu preferia que não estivesse, porque aí poderia deixar que ela reclinasse o corpo púbere sobre o meu braço para ver melhor através do vidro, e deliciar-me em segredo com o veludo da pele. 
            Na sombra dos meus desejos, as vezes ansiava demais. Como quando vendo-a refrescar-se com a mangueira no gramado, naquele dia de verão, o corpo dourado num biquíni velho, meio manchado, das canelas aos braços arrepiada com o vento... Quase cedi. Éramos só nós, nos três mais perigosos dias de minha vida, mascarados com chinelos sobre a mesinha e o jornal da manhã. Mascarados como o dedicado padrasto e a extrovertida enteada. 
            Observando-a por sobre os óculos escuros, senti cada músculo do meu corpo enrijecer. Toda vez que ela se abaixava para alcançar um objeto no chão, eu queria gritar. Matava-me cada dia tocá-la sem realmente tocar. Matava-me não poder me aventurar por entre aquelas pernas morenas e macias, com cicatrizes que eu apontaria de olhos fechados. Seria fácil, a confiança cega de uma criança jamais poderia presumir maldade no meio de tanto amor. 
            Se eu pudesse cobri-la comigo, ah! Se pudesse deitá-la no sofá e sorver os lábios com sabor do último pirulito, alcançaria o êxtase antes mesmo de livrá-la do biquíni tenebroso. Os joelhos ossudos se dobrariam conforme os apelos do corpo pequeno, as mãos raladas juntariam-se as minhas e juntos teríamos o deleite profundo do amor. No final, o último gemido com a voz fina escaparia de seus lábios, os botões de seios deixariam sair o último jorro de ar e eu iria cheirar o xampú de camomila nos cabelos irremediavelmente soltos...
            E então ela deixaria de ser tudo o que é. Aquela adorável menina de cicatrizes nas canelas, entenderia o coito, entenderia as maldades das carícias que antes eu fiz e que pareceram totalmente inofensivas. Na minha mente, eram todas recheadas de suor e sêmen. Então haveria maldade também no olhar dela, e apreciando cada uma dessas coisas, tornaria-se aberta a outro predador. Não! Nunca! Jamais outro a teria! Antes preferia morrer eternamente de solidão ao vê-la deixar toda a natureza de ninfeta e tornar-se uma histérica adolescente, do que outro homem sugando o frescor de sua alma infantil.
            A tentação quase me fez violá-la, como faz ainda quando os meus instintos sombrios estão inflamados. Ela era minha, e permaneceria como minha até que, sem nunca saber, me deixaria para morrer na memória do que um dia foi.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Mas onde foi que eu errei?


            Segunda-feira á tarde, centro fervilhando de gente, um calor de matar. A mãe arrastava o filho pelo braço, resmungando sobre as amenidades e injustiças do cidadão de bem, alheia a história que o menino contava sobre uma aventura na escola, e como seria bom ter passeios nos bosques todos os dias. Quando disse que queria virar explorador um dia, ela parou, soltou-o e o olhou carrancuda. Em seguida se abaixou, repuxou os lábios, e disse em desaprovação:
            - Que explorador o que, menino! Isso é coisa de vagabundo, você tem que trabalhar com alguma coisa de verdade!
            O menino baixou os olhos e ficou com aquilo na cabeça por todo caminho até a casa.
            Em outra tarde, foram à feira. Depois de comprar alfaces e cebolas, o menino fez as contas e viu que o moço tinha que devolver cinco reais, mas na verdade devolveu seis e a mãe guardou do mesmo jeito, ainda que tenha lhe puxado a saia e avisado depois. Porém, não perguntou, porque ela sempre dizia que “um real não tem problema”, ou algo que acalmasse igualmente a consciência.
            Em casa não era diferente. O pai era o tipo de homem que achava que a  mulher tinha que cuidar dos filhos, fazer todo o serviço de casa e ainda deixar a janta pronta na mesa para quando chegasse, e ai se não o fizesse. Ele também, tinha que se comportar como homem. A única vez que se aproximou de uma boneca, Deus do céu, tomou uma surra tão grande que chegou a ficar com o traseiro inchado por dias. Umas cervejinhas a noite para acalmar todo o estresse do trabalho e igreja aos domingos, para construir a moral da família cristã em prol do pós-vida.
            Acabou que o menino virou um adolescente amargurado, enraivecido. Quis virar pintor, mas era escurraçado, puxado para trás. E quando fez amizade com um colega que era preto e gay? “Não é que eu tenha preconceito, mas...”, a mãe dizia. O pai culpava o teatro, o vídeo-game, a televisão... Nem os livros escapavam. Ele era um vagabundo, que não prestava para nada, e se envolvia com gente da pior espécie. Um desperdício. Ter um filho desse tipo não valia a pena, apenas decepções. E depois de tudo que haviam feito!
            Anos depois de ter virado adulto, os pais não entenderam quando receberam a notícia. Ir a Corte? Eles? Uma família exemplo? Um absurdo. Quando foram, e ouviram que o filho estava sendo acusado de espancar a mulher, dirigir alcoolizado, racismo, homofobia e agora, ainda por cima, roubar, a mãe se virou em prantos para o pai e encostou em seu ombro.
            - Onde foi que eu errei ao criar esse menino, meu deus do céu?
            Ao que o pai respondeu:
            - Esse menino já nasceu assim. Tem gente que não tem jeito, já nasce ruim, e é isso que a gente recebe!  

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

O ver invisível

                                      "De repente, a gente vê que perdeu 
                                      Ou está perdendo alguma coisa 
                                      Morna e ingênua que vai ficando no caminho" 
                                                                                   - Cazuza 

                Um dia acordei e vi que tinha me perdido. Não me perdi dos outros, de casa, não – me perdi de mim. Sobrevivia sem viver. Só ia, sem saber aonde chegar, sem sentir o cheiro das flores no caminho. Não sabia o que estava fazendo vivo, porque não ouvia nada vindo do lado de dentro. Não sabia como agir. Não sabia quem era eu. 
                Quis ir embora, me encontrar em algum lugar. Apesar dos amigos queridos, sempre fui solitário por dentro, e acreditei que a cara solidão era melhor companheira para chegar até mim do que eles. Fui. Larguei tudo, amigos, família, trabalho. Viajei por Minas, Rio, São Paulo, Bahia, cheguei até na Argentina. Vivi lá por cinco anos – o primeiro mais difícil –, arrumei um trabalho numa relojoaria, casei com uma argentino-chilena e até comecei a pensar em fazer família.
                Um dia acordei e vi que tinha me perdido. Me perdi da solidão, me perdi do caminho para mim mesmo. Estava sobrevivendo de novo, e quando parei para escutar, não ouvi nada do lado de dentro. Estava vazio, não sabia quem eu era, nem porquê estava ali. A despeito das lágrimas da esposa, larguei tudo e fui embora de novo. Virei marinheiro.
                Naveguei o Atlântico de cima a baixo, tomei o vinho dos colonizadores, vi o vermelho caribenho e até presenciei um homem morrer por um diamante angolano. Em dez anos aprendi um pouco de todas as línguas, experimentei um pouco de todas as culturas e trabalhei com coisas impossíveis de se imaginar.
                Um dia acordei e vi que tinha me perdido. Sabia de todo o mundo, mas não sabia de mim. Eu me esquecera de mim. Me forcei a ouvir, mas continuei a não escutar nada vindo do lado de dentro. O silêncio estava tão profundo quanto da primeira vez que eu havia o notado, e agora que já tinha ido para todos os lugares, não sabia mais para onde ir. Decidi que só ouviria quando estivesse em total silêncio, e fui embora. Me mudei para as montanhas da Austrália.
                Construí uma casa, fiz um jardim, cheguei inclusive a arrumar lugar para alguns animais. Não tinha amigos lá, não casei de novo, não viajei. Vivi na cabana por vinte anos para conseguir ouvir algo dentro de mim, e não escutei nada. Nem um dia, nem uma única vez. Já estava velho, morreria logo, e resolvi voltar para casa. Metade dos meus amigos já estavam mortos, a maior parte da família também. Um dia, chegou a minha vez.
                Era noite de primavera, o ar da noite estava fresco e eu fechei os olhos. No silêncio daquele momento, enquanto o ar soprava pela janela aberta, ouvi. Ouvi dentro de mim. Um suspiro, quase um sussurro, que fez meu coração acelerar enquanto eu o escutava e depois se acalmar quando o entendi. As repostas estavam distantes de todos os cantos do mundo, e a distância de um sopro de criança de mim. Eu buscara tanto descobrir quem era, que havia descoberto tudo, menos como me enxergar. Para mim, eu era invisível.
                Mas já era tarde demais. Morri, sem nunca ver quem eu era.

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Brisa de outono


            O olhar ameno desceu, lenta e melancolicamente, para junto dos lírios-do-vale, fechados em si em sua própria e infinda tristeza. A brisa de outono dos altos vales europeus os agitava, num movimento tanto desprovido de ritmo que chegava a ser belo, da forma como apenas o impensado da natureza podia ser - movimento este que em poucas semanas os levaria para longe, em direção ao profundo azul do Atlântico. Ali, as pétalas desenleadas receberiam seu último sopro outonal e, completas em vida, voariam ao seu derradeiro fim.
            No Brasil não havia flores como aquela. Talvez na região Sul, onde o clima temperado era favorável, mas certamente não onde havia Caído. As terras quentes do litoral brasileiro não permitiriam que nada tão triste se erguesse sobre a areia branca das praias virgens. Não tão virgens quanto já foram um dia, ponderou, mas, alegrava-se ao pensar que a em que acordara pela primeira vez junto aos terrenos, continuava intacta, longe dos olhares - e do conhecimento - de, facilmente, noventa e oito por cento da população. Sentia saudades da segunda casa. Com o tempo, passara a apreciar o mundo humano, a criação primordial do Altíssimo, e não apenas por Ele tê-los o feito - e como anjo guerreiro, ser seu dever os proteger - mas por haver no plano físico uma quantidade inumerável de locais, experiências e realidades a se conhecer. O livre arbítrio, uma dádiva concedida apenas aos terrenos, os levou à pólos opostos e inimagináveis - à destruição e à glória. Nenhum anjo jamais poderia sonhar com aquilo para si. Uma alma, o poder de desenhar o próprio destino. 
            Uma das mãos foi erguida, e uma antiga, e aparentemente inútil arpa ao lado do alto homem de cabelos ruivos começou a tocar. Era uma antiga canção celta, apreciada em diversos festivais de recepção do outono, especialmente no sudeste de onde é hoje o País de Gales, e naturalmente onde a aprendera, quatro mil anos antes. Ainda que estivesse um tanto distraído com a melodia, os instintos naturais de anjo não deixavam passar -  estava quase na hora.
            E não se enganou. Pouco tempo depois, o tecido que divide o plano físico do etéreo foi rompido naquele vale. O anjo não estava ali por coincidência. Locais intocados pelo ser humano e/ou espiritualizados - antigos templos, ou acampamentos de ceitas de magos, por exemplo - possuem o tecido dos dois mundos muito mais fino, e sendo assim, são mais fáceis de serem rompidos. Dessa forma, os anjos, materializados em seus corpos físicos, podem passar ao mundo terreno e circular sem serem notados pelos humanos. Os sentidos se aprumaram, a intensidade de sua aura aumentou, e num instante veloz como um piscar de olhos, outro homem apareceu. Este tinha aparência mais rígida ainda, característica de quem, há muitos séculos não sai de batalha. A música desapareceu, e ambos os guerreiros trocaram olhares, cumprimentando-se silenciosamente.
            - A terrena está morta? - Indagou o moreno, em sua voz de trovão.
            O outro não se demorou.
            - Sim. Ele a havia matado há muito tempo... - Tinha um tom de indignação dolorida na voz, mas havia cem anos que o assassinato ocorrera, e por mais que tivesse jurado vingança, aprendera a controlar os instintos sanguinários. - ... Apenas queria me emboscar.
            O recém chegado fez uma pausa. Olhava a vasta extensão de terras cobertas de grama laranja, mas nada falou sobre elas, apenas esperou o momento que julgou ser correto antes de voltar a retomar a voz. O anjo caído era seu amigo desde os tempos de criação do mundo, a solidariedade e amizade era marca registrada dos dois.
            - Seja bem vindo de volta, comandante. Vamos salvar a Criação... - Ele se virou para o outro - e vingar a terrena. 
            O anjo ruivo fez um aceno positivo com a cabeça, e respirou profundamente, pela última vez, o ar limpo do vale esquecido. 
            - Sim, general. Estou pronto a liderar minhas legiões. 
            Nada mais necessitava ser conversado. O tecido se rompeu de novo, e pela primeira vez em centenas de anos, o anjo deixou que as asas se separassem das costas, e ambos alçaram vôo num impulso, indo em direção ao céu que parecia infinito... Até desaparecerem. "Vença o fim do mundo. Sua missão, Amael, é salvar a raça humana." 
            Deteria o extermínio dos Filhos da Criação. Era sua vida, era sua honra, seu sangue, seu dever. 
            Era, acima de tudo, a sua vingança.   

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Epitáfio

Antes via as horas e elas sequer tinham significado. O tempo, para o jovem, é sempre infinito, - "futuro" por si só já soa a centenas de anos-luz de distância - mas agora que estou velho, que as visão já embaça e só se é possível dormir com mais pílulas que desejei conhecer, penso quanto dele ainda me resta. Fiz tudo o que quis? Tudo o que pude? Foi o suficiente? 
Não. Uma palavra simples - e mortal - que meu coração falou mais alto do que eu queria ouvir. A dilacerante sensação de perda, um buraco negro dentro das minhas memórias sugando tudo que eu deveria ter feito - e não fiz - para dentro, numa expansão contínua de 
Arrependimento. 
"Não se pode acertar toda vez", alguém me disse certa vez, "sempre haverá algo faltando. Ninguém tem tudo". 
Mas estranhamente eu sentia como se não tivesse nada. Os meus sonhos, - eu tinha sonhos - o que fiz deles? Fechei os olhos, tentando me recordar apesar da memória falha quais eram. Fazia anos - décadas - que não ouvia mais aquela palavra. "Sonho", uma palavra carregada em esperança e expectativa. Quais foram as minhas e em que momento se perderam? Forcei mais. Não conseguia me lembrar. 
De repente, não sabia mais o que havia feito da minha vida, o que havia sido. Onde estava todo o tempo que dizia não ter nem para fazer uma única - veja bem - visita aos pais? Me lembrava de estar sempre sem tempo. Corria e acelerava tudo o que podia, mas ironicamente não tinha nenhum. Até que então o Sr e a Sra. Andrade faleceram e já não podia fazer-lhes qualquer visita. Nem no Natal que, por sinal, detestava. Natal, Ano-Novo, reuniões, familiares... Por alguma razão todos conseguiam me irritar, principalmente crianças. Além do que tinha os problemas do trabalho - isso é, ate antes de ser demitido pela idade - e... Céus, o que eu virei? Depois de tantos anos eu tinha me tornado um homem amargo? Até mesmo... Infeliz? Me lembrava de gostar de tudo, amava ver e conversar com as pessoas. Só não sei em que momento tudo se perdeu.
Você não tem nada. Onde está a mulher que amou? O filho que abandonou? Os amigos que feriu? 
"Não sei", respondi, a voz embargada de uma dor sem volta, da dor das coisas que perdi e já não poderia mais recuperar. Passei tanto tempo sem tempo que ele passou, e eu nem vi. Nem vivi.


Quando era jovem, Sérgio queria ser político, dizia-se marxista convicto, existencialista e não só! Seria voluntário, em alguns anos - não muitos, pelas suas contas - tiraria todos os indigentes da rua e daria condição do Brasil ser um país decente e igualitário. Ninguém mais ia sofrer preconceito pelo que quer que fosse e ele estaria na liderança disso. Faria um país melhor, um país "de todos", como a propaganda dizia, e não de "tolos" como os oposicionistas e a realidade diziam. 
De cada uma dessas coisas ele se lembrou. Assim como se lembrou de ter abandonado a mulher que amava por uma rica e velha - ainda que a primeira estivesse grávida -, de apontar o dedo para o negro no ponto de ônibus, de passar reto pelo mendigo na rua e de se se vender para primeira empresa que lhe ofereceu um posto alto. Culpou o mundo, as circunstâncias e por fim, o maior e verdadeiro culpado de tudo, a si próprio. 
Chorou. Ele sabia que não era o único, mas estava sozinho. Em breve morreria e ninguém saberia, se lembraria, se importaria. Quem era ele e o que tinha sido? Era tarde demais, e em algum lugar muito longe, Branco Mello cantava: Devia ter complicado menos/Trabalhado menos/Ter visto o sol se pôr/Devia ter me importado menos/Com problemas pequenos/Ter morrido de amor.

Música: Titãs - Epitáfio

domingo, 1 de janeiro de 2012

Sol

 O laranja do céu se misturou com o mar. Dali, da areia, podia sentir o frescor da brisa de fim de tarde, mas era incapaz de dar atenção a ela. Buscava algo mais, algo... Além.
Abraçou os joelhos, erguendo ligeiramente o queixo até tocar o antebraço e enfim deixar-se repousar ali, admirando o que lhe parecia, daquela distância, inalcançável.
Perguntou-se se era possível tocar nos raios de sol que eram os fios do cabelo dela. Ou talvez... A pele acobreada? Podia aceitar isso. Definitivamente podia. Se ela quisesse, podia mostrar algumas manobras de surf, ainda que certamente ela soubesse muito mais. Inventaria alguma. Podia fazer isso. No entanto, contentava-se em admirá-la de longe.
Fechou os olhos um instante – aquele era o perfume dela misturado ao vento? Era bom, combinava com o cheiro de verão. Não se admirava, com o sol nos cabelos era natural que fosse filha da estação mais quente de todas. O riso era quente, também. A viu dar o último mergulho do dia, um arrepio leve na nuca, mas sem se movimentar. Ajeitou-se mais um pouco em sua posição de admiradora e então... Ela a olhou. Um sorriso pequeno e suave despontou de seus lábios, apaixonado. Perguntou-se se ela sabia como inclinava quase imperceptivelmente a cabeça para o lado quando sorria, os olhos com tanta vida quanto se podia ter. A correnteza invisível dos verdes dela puxava e puxava, num desejo mal de afogar pobres coitados que se aventuravam, mas a maldade não combinava com ela. Talvez só ela mesma se sentisse puxada, e o resto das pessoas não, mas ao seu ver era incabível que algo do tipo acontecesse. Eram... Lindos. Como ela, por inteiro.
- Lia? – A voz repentina a tirou de seus devaneios, despertando-a com um sobressalto. Viu o sorriso quente aparecer nos lábios dela. Seu coração acelerou. – O que foi? Parece chapada – Aquela risada faria seu peito explodir. – Vamos. O Nando ta me esperando lá em casa. Ele disse que vai me dar uma surpresa pelo campeonato. Imagina!
Nando. Claro. Frequentemente se esquecia dele, não era por mal.
- Ah... Foi mal, ‘tava viajando. – Ergueu-se da areia, pegando a prancha enterrada ao seu lado. Sorriu, notando pela milésima vez naquele dia a cabeça da loira inclinar-se ligeiramente – Vamos. E é bom que seja uma surpresa boa! Você mereceu o campeonato.
Numa deliciosa tortura, pegou a mão dela. Sempre voltavam de mãos dadas para casa, era a forma de dizerem, sem palavras, que sempre estariam juntas, uma para a outra, incondicionalmente. Sentiu os dedos formigarem, como sempre faziam ao toque as palmas, mas não pôde sentir. Naquele momento não buscava nada mais, a felicidade de estar com ela era o suficiente para se completar. 

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Ser

Eu não sei ser de. Sei ser do. Sou do mundo, do sentimento, do tudo. O amor é minha esquerda e o instinto minha direita. O que aprendi, aprendi na vida e ninguém me ensinou. Sou de quem quiser, do que der e vier e mais um pouco. Não sei viver presa, viver de grades e responsabilidade. Isso não sou eu, não é o que quero ser. O medo não é pra mim.
Eu sou livre. Livre pra seguir o peito, pra pensar, voar e cantar. Tudo o que não conheço, o limite, a perdição. Eu sou da tribo do abraço, não tenho preconceito nem receio. Conheço a noite de perto, todos seus filhos e amigos. Ela é feita pra gente amar, se apaixonar, desgorvernar e delirar por caminhos que a gente não imagina. A vida é assim. A minha paixão é a vida.